O
DÉDÉ
No início da década de
oitenta e durante alguns anos, trabalhei aos fins de semana na chamada urgência
de um hospital concelhio da margem sul do Tejo.
A equipa de serviço era
composta pelo médico e pela enfermeira e os períodos de trabalho eram de 20 ou 24 horas. Numa “boa urgência” eram vistos 50 doentes,
numa má perto de 90.
As famílias aproveitavam
os domingos à tarde para virem com as suas crianças à consulta. Era um período
de grande crise económica e social na península de Setúbal, com fábricas a
encerrar a toda a hora e naturalmente muito desemprego e fome. Algumas
prescrições que passei foram aviadas na cozinha do hospital, em vez de o serem
na farmácia.
E é numa dessas tardes
quentes e luminosas, com a sala de espera a abarrotar de gente, em que eu me
encontro tranquilamente a observar um doente, que entra pelo gabinete
visivelmente assustada, a enfermeira avisando-me que lá fora estava o Dédé *
que queria ser visto pelo médico. Desconhecia quem era o indivíduo, mas
rapidamente apurei que se tratava de alguém com um passado muito violento, que
tinha sido recentemente libertado após o cumprimento de uma longa pena de
prisão.
- Se o homem quer ser visto
pelo médico, que entre. – disse para a enfermeira, com alguma apreensão.
Entretanto, a sala de espera há pouco cheia e ruidosa estava agora vazia e
silenciosa, e … o Dédé lá entrou para o gabinete fazendo-se acompanhar de um
guarda-costas corpulento, em que se adivinhava uma pistola à cinta. O nosso
doente que teria a minha idade, pouco mais de trinta anos, aparentava ser mais
velho com cicatrizes num rosto de pele ressequida. A consulta iniciou-se com
normalidade, comigo a ouvi-lo com empatia e atenção contar as suas queixas; de
seguida passei ao exame físico - mais cicatrizes no tórax - que pela sua
localização só poderiam ter resultado de ferimentos superficiais. Recordo-me de
ele ter comentado, que era a primeira vez que alguém o auscultava. A situação
não tinha gravidade e a consulta encaminhou-se para o fim em ambiente ameno,
com a prescrição de um analgésico.
O Dédé reconhecido, não
quis sair sem se me dirigir dizendo qualquer coisa como isto: “andam por aí
alguns.... que só se não pudesse…. mas os médicos eram uns gajos porreiros”. E
concluiu: “se algum dia alguém fizesse mal a mim ou a um dos meus ou me
roubassem o carro, que passasse pela leitaria X, que se ele não estivesse lá, alguém
estaria por ele que trataria do assunto”.
E lá se foi com o seu
guarda-costas silencioso, deixando-me atordoado, tentando adivinhar os dramas que
se terão atravessado na vida daquele homem, quanta infelicidade terá sofrido e
quanta desgraça terá provocado.
Esta pequena história não
termina aqui.
Um ano após este
episódio, estava eu num quiosque a passear os olhos pelas primeiras páginas dos jornais, quando
deparo com o seguinte título em letras garrafais de um jornal sensacionalista:
“Dédé morto a tiro em luta entre grupos rivais”.
E lá perdi para sempre o
meu anjo (ou demónio) da guarda, que não queria mais de mim do que um pouco de
atenção.
*Dédé - alcunha fictícia
C.F.