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domingo, 16 de julho de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÌNICA - 7

  HISTÓRIAS DA VIDA CLÌNICA - 7


                                    O galo

 

     O Serviço Médico à Periferia que nos levou a terras e vivencias desconhecidas foi uma aprendizagem ímpar que eu julgo que continua a fazer falta aos jovens médicos.

     Nos anos setenta as nossas vilas e aldeias do interior eram muito mais povoadas, a maioria analfabetos, mas com uma simplicidade e bondade de caracter que a cada momento nos surpreendia.

       Os que vivem nas grandes cidades e não têm contacto com o povo não compreendem o modo de viver dum povo castigado com decisões sempre hostis e erradas ditadas por interesses mesquinhos que vão despovoando o nosso interior afugentando os médicos deixando-os outra vez entregues a si próprios escolas longe hospitais longe desemprego um convite permanente ao abandono.

    A relação médico/doente era bem diferente do que é hoje -um novo doente era um potencial amigo ainda não havia utentes e muito menos clientes as campanhas anti-médico ainda não tinham começado.

     A aldeia onde fiz consulta durante um ano tinha muito poucos transportes públicos e o carro do médico servia também para transportar doentes que precisavam de internamento ou para se deslocarem à Vila.

    Um dia uma senhora de 50 e poucos anos com uma infecção respiratória com mais de uma semana de evolução e febre alta veio à consulta ,como precisava dum RX e análises avisou a família que podia ter de ficar internada e no final da consulta levei-a ao Hospital fiz um RX -eramos nós que fazíamos os RX não havia técnico- fez análises confirmou-se a suspeita clinica de pneumonia ficou internada dois dias no dia da alta passei no Hospital de manhã e levei a doente para casa que era na aldeia onde fazia consulta.

   Na Consulta seguinte Curada da Pneumonia disse-lhe -pronto agora só necessita de voltar à consulta dentro de 15 dias. Dr estou-lhe muito agradecida por tudo o que fez por mim e na próxima consulta vou trazer-lhe um GALO muito bonito que tenho lá no meu quintal- Deixe estar o galo que não tenho capoeira para o guardar-não, faça uma canjinha que é muito boa dum galo daqueles dá muita saúde.

   Na consulta seguinte confirmou-se que a tosse residual já tinha passado e estava sem queixas.

   O Dr Hoje já vinha a contar com o GALO mas olhe adoeceu um filho meu e tive de o matar para fazer uma canjinha , trago-lhe dois pombinhos, não é a mesma coisa, mas também fazem uma canjinha muito boa.

  Agradeci naturalmente a oferta, mas fiquei mais maravilhado com a sinceridade e simplicidade com que honestamente se justificou, os pombos foram oferecidos a um pombal que havia no Monte onde residíamos.

A doente e a sua família ficaram naturalmente nossos amigos.  

Juramento de Hipócrates

Versão de 1983

A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.

Manterei por todos os meios ao meu alcance, a honra e as nobres tradições da profissão médica.


A.M.

 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 6

 

         Histórias da vida clínica - 6


                    As Instalações degradadas

 

 

   Os Hospitais têm em geral instalações muito degradadas. 

  Os Hospitais Civis de Lisboa ocupam Edifícios Centenários que pertenceram a antigos Conventos, estão em remodelação permanente, em regra pequenas obras que nada resolvem, e com o passar do tempo vamo-nos alheando desta situação humilhante em que trabalhamos.

   A nossa preocupação é a de melhorar os cuidados médicos, realizar uma medicina de excelência, intervenções cirúrgicas de ponta iguais às que se realizam nos melhores Hospitais do Mundo e vamos esquecendo que as instalações estão cada vez mais degradadas.

   Claro que quando vamos Estagiar no Estrangeiro encontramos uma diferença abismal, em tudo, principalmente na Organização e na Qualidade das Instalações.

  A maioria dos nossos Blocos Operatórios não tem as condições exigidas hoje em qualquer País da Europa, os gabinetes de consulta têm as paredes e as janelas a evidenciar degradação avançada.

 Na verdade, no dia a dia, vamos esquecendo tudo isto e trabalhamos como que anestesiados, orgulhosos do nosso trabalho, foi assim durante muitos anos, claro que na ultima década as coisas pioraram muito e cada vez se passou a ouvir mais entre os médicos -estou a contar os dias para me ir embora.

  O descontentamento alastrou fomos despindo a camisola entrámos numa degradação sem retorno.

  Mas nos anos noventa a vontade era soberana estávamos orgulhosos do nosso trabalho e do nosso Hospital.

   Num dia normal de consulta  chega-nos um doente operado há alguns meses ,satisfeito com os resultados da Intervenção Cirúrgica, vinha mais para agradecer do que para ser consultado. Como residia numa zona com Instalações Termais afamadas e tinha uma         artrite em tratamento recomendei-lhe que poderia aproveitar  as termas para ir tratar a sua poliartrite -e a resposta foi imediata:- Dr as Termas estão muito degradadas ,aquilo está uma desgraça, olhe assim como as Instalações aqui do Hospital as paredes estão assim como estas que o Sr Dr tem aqui no seu gabinete.

  Acordei de repente do meu sonho cor-de-rosa, pensei nestas palavras durante muito tempo e senti-me naturalmente amargurado e humilhado com tão dura realidade.


    A.M.

sábado, 13 de maio de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 5

 

Haja Deus!

 

O episódio que descrevo a seguir, ocorreu comigo há cerca de quarenta anos na mesma urgência do hospital concelhio, onde vivi solitário outros casos inesquecíveis.  

 

- Haja Deus! – foram as primeiras palavras da doente.

Era domingo, esta senhora encontrava-se tranquilamente a almoçar em casa na companhia do marido, quando ao mastigar um pedaço duro de carne, ficou subitamente com a mandíbula imobilizada e dolorosa, o que motivou a sua vinda imediata à urgência.  

À entrada, apresentava-se com a face assimétrica, de boca aberta sem conseguir falar, babando-se copiosamente e de olhar assustado. A surpresa era grande, pois era a primeira vez que tal lhe tinha acontecido.

O que se tinha passado? A extremidade superior do osso maxilar (inferior) do lado esquerdo, tinha saído da sua cavidade natural, o que provocou um bloqueio da articulação.

Palpei cuidadosamente as articulações dos dois lados do rosto. Naquele hospital não dispunha do apoio de Radiologia. Ponderei rapidamente a situação, e decidi-me por tentar sem demoras resolver ali mesmo o problema – reduzindo a luxação. Ia medir forças com um músculo fortíssimo o – masséter - para restituir a extremidade do osso à sua localização original. Prescrevi um relaxante muscular e um analgésico, esperei pelo efeito e com toda a força pressionei para baixo sobre os dentes de trás, empurrei o queixo para cima, e senti nos dedos o ressalto da entrada do osso na cavidade.

E é quando a doente solta a exclamação com que começo estas linhas:

- Haja Deus! - certamente que não estava a referir-se a mim.

Escusado será dizer que teve alívio imediato e saiu felicíssima com o marido de regresso a casa.

E eu, ainda não acreditava no que tinha conseguido fazer, era a primeira vez que me confrontava com uma luxação temporo-mandibular e resolvia a situação sozinho.

Curiosamente, passados um ou dois meses surge-me outra doente com o mesmo problema e eu muito confiante, não hesitei em tentar a mesma manobra, tentei, tentei, tentei…. e o osso permaneceu imóvel indiferente aos meus esforços, pelo que me decidi pela transferência da doente para a urgência de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital de S. José, em Lisboa.

A isto chamo: a sorte do principiante.

C.F.

terça-feira, 2 de maio de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 4

 

605 Forte


Com poucos anos de exercício da profissão médica, no princípio dos anos oitenta, trabalhei aos fins de semana na urgência de um hospital concelhio.

O Serviço Nacional de Saúde já criado, estava a dar os primeiros passos na sua implementação.

A equipa da urgência era mínima: um médico e uma enfermeira, e os meios postos à nossa disposição eram rudimentares. A oferta de cuidados de saúde no concelho era pouca, para uma população numerosa com fracos recursos.

Num desses dias de trabalho intenso, quando me encontrava a observar um doente, sou interrompido por uma algazarra vinda da entrada da urgência, e de imediato, a sala onde eu estava é invadida por várias pessoas a acompanhar um jovem muito agitado, que ao entrar no gabinete gritava repetidamente: - Dr.  estou perdido por amor de Deus salve-me a vida, salve-me vida! -, como se eu estivesse investido de poderes divinos.

Não era difícil perceber, pelo cheiro característico que dele emanava o que tinha acontecido: tinha ingerido 605 forte, um veneno muito potente utilizado na agricultura e  pelos suicidas em meio rural. Este produto deixa um rasto de destruição tal nos órgãos por onde passa, para mim só comparável à imagem de uma corrente de lava.

Senti dramaticamente que este jovem não tinha desistido e eu pouco tinha para lhe oferecer, mas tudo faria para o manter vivo. Tenho para mim, desde sempre, que praticar Medicina sem compaixão não é ser médico, será outra coisa qualquer.

Este trabalhador rural tinha escolhido a cabana das alfaias agrícolas da propriedade onde trabalhava para preparar e ingerir o veneno. Assim o fez, e logo se arrependeu e correu a pedir socorro aos seus vizinhos que o trouxeram ao hospital.

O meu objetivo era fazer chegar este homem vivo à unidade de cuidados intensivos mais próxima, no caso a U.U.M. do Hospital de S. José, que distava 40-50 km do local de onde nos encontrávamos.

Além de outras medidas de suporte dirigidas às manifestações respiratórias, era vital estabilizar o ritmo de um coração que teimava em parar. Não dispunha sequer de um electrocardiógrafo. Recordo-me de lhe ter administrado várias vezes atropina para acelerar o ritmo cardíaco e criar as condições mínimas para a sua evacuação.

Chamámos os bombeiros, que ao chegarem nos disseram que tinham trazido a ambulância mais veloz que lá tinham – atingia os 150 Km/h!

À saída pedi-lhes duas coisas: que não se matassem pelo caminho e no regresso passassem lá pelo hospital, para me informarem se o doente tinha chegado vivo aos cuidados intensivos.

A sala onde tínhamos estado a assistir ao doente era grande, mas o cheiro que o veneno deixou era de tal modo intenso que teve de ficar sem poder ser utilizada, com as janelas abertas, o resto do período daquela urgência.

Ao fim de algumas horas, apareceram ao fundo do corredor os dois jovens bombeiros sorridentes.

  - Dr. ele chegou vivo! -  disseram-me felizes. Abraçámo-nos e agradeci-lhes a ajuda que me tinham dado e principalmente ao doente.

Naquela corrida de estafetas contra a morte, tínhamos cumprido a nossa parte.

No meio daquela tragédia, ficaram-me perguntas sem respostas: que sofrimento estaria por detrás de tudo aquilo que vivenciámos? que personalidade era aquela? que razões teriam levado aquele jovem a um gesto tão definitivo, seguido de um arrependimento tão imediato?  

Estes desastres humanos a que os médicos estão tantas vezes expostos, deixam marcas que os acompanham o resto da vida.

C.F.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 3

 

O DÉDÉ


No início da década de oitenta e durante alguns anos, trabalhei aos fins de semana na chamada urgência de um hospital concelhio da margem sul do Tejo.

A equipa de serviço era composta pelo médico e pela  enfermeira e os períodos de trabalho eram de 20 ou 24 horas. Numa “boa urgência” eram vistos 50 doentes, numa má perto de 90.

As famílias aproveitavam os domingos à tarde para virem com as suas crianças à consulta. Era um período de grande crise económica e social na península de Setúbal, com fábricas a encerrar a toda a hora e naturalmente muito desemprego e fome. Algumas prescrições que passei foram aviadas na cozinha do hospital, em vez de o serem na farmácia.

E é numa dessas tardes quentes e luminosas, com a sala de espera a abarrotar de gente, em que eu me encontro tranquilamente a observar um doente, que entra pelo gabinete visivelmente assustada, a enfermeira avisando-me que lá fora estava o Dédé * que queria ser visto pelo médico. Desconhecia quem era o indivíduo, mas rapidamente apurei que se tratava de alguém com um passado muito violento, que tinha sido recentemente libertado após o cumprimento de uma longa pena de prisão.

- Se o homem quer ser visto pelo médico, que entre. – disse para a enfermeira, com alguma apreensão. Entretanto, a sala de espera há pouco cheia e ruidosa estava agora vazia e silenciosa, e … o Dédé lá entrou para o gabinete fazendo-se acompanhar de um guarda-costas corpulento, em que se adivinhava uma pistola à cinta. O nosso doente que teria a minha idade, pouco mais de trinta anos, aparentava ser mais velho com cicatrizes num rosto de pele ressequida. A consulta iniciou-se com normalidade, comigo a ouvi-lo com empatia e atenção contar as suas queixas; de seguida passei ao exame físico - mais cicatrizes no tórax - que pela sua localização só poderiam ter resultado de ferimentos superficiais. Recordo-me de ele ter comentado, que era a primeira vez que alguém o auscultava. A situação não tinha gravidade e a consulta encaminhou-se para o fim em ambiente ameno, com a prescrição de um analgésico.

O Dédé reconhecido, não quis sair sem se me dirigir dizendo qualquer coisa como isto: “andam por aí alguns.... que só se não pudesse…. mas os médicos eram uns gajos porreiros”. E concluiu: “se algum dia alguém fizesse mal a mim ou a um dos meus ou me roubassem o carro, que passasse pela leitaria X, que se ele não estivesse lá, alguém estaria por ele que trataria do assunto”.

E lá se foi com o seu guarda-costas silencioso, deixando-me atordoado, tentando adivinhar os dramas que se terão atravessado na vida daquele homem, quanta infelicidade terá sofrido e quanta desgraça terá provocado.

Esta pequena história não termina aqui.

Um ano após este episódio, estava eu num quiosque a passear os olhos pelas primeiras páginas dos jornais, quando deparo com o seguinte título em letras garrafais de um jornal sensacionalista: “Dédé morto a tiro em luta entre grupos rivais”.

E lá perdi para sempre o meu anjo (ou demónio) da guarda, que não queria mais de mim do que um pouco de atenção.

*Dédé - alcunha fictícia

C.F.

domingo, 19 de março de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 1

 

 

Todos temos ao fim de uma vida de trabalho histórias para contar umas trágicas outras divertidas e com final feliz ,algumas encerram grandes ensinamentos que nos ficam na memória para toda a vida.

Vamos agora iniciar a publicação de algumas histórias  que nos pareceram dignas de ser contadas, aproveitamos para pedir a todos os leitores para nos enviarem algumas que vos pareçam relevantes.

                                                    Politraumatizado

As Urgências sempre foram fonte de episódios inusitados e quando pensamos que já vimos de tudo eis que aparece uma surpresa.

Numa daquelas noites pesadas em que não paravam de chegar politraumatizados vitimas de acidentes de automóvel, já noite dentro o Cirurgião Chefe da equipa de Banco foi passar visita ao SO.

Um doente Politraumatizado com traumatismo craniano , perda do conhecimento e traumatismo abdominal grave, foi apresentado na visita como um caso muito complicado, estava com agitação psicomotora, discurso incoerente, parecia completamente alheado do que se passava à sua volta. 

Depois de ter enumerado minuciosamente todos os problemas encontrados, o médico que o estava a assistir concluiu – NEM SEI BEM O QUE HEI DE FAZER - nesse momento o doente no meio de palavras impercetíveis diz - Dr. se não sabe o que deve fazer o melhor é não fazer nada.

Palavras sábias que me ficaram na memória para sempre, quando tenho algum caso mais complicado lembro-me sempre deste episódio .

Primum non nocere ou primum nil nocere é um termo latino que significa "primeiro, não prejudicar"

A origem do termo geralmente é atribuída a Hipócrates (460AC-377AC), o pai da medicina, que escreveu que "o médico deve... ter dois objetivos, fazer o bem e evitar fazer o mal".

                                                                                                                                          A.M.