605 Forte
Com poucos
anos de exercício da profissão médica, no princípio dos anos oitenta, trabalhei
aos fins de semana na urgência de um hospital concelhio.
O Serviço
Nacional de Saúde já criado, estava a dar os primeiros passos na sua implementação.
A equipa da
urgência era mínima: um médico e uma enfermeira, e os meios postos à nossa
disposição eram rudimentares. A oferta de cuidados de saúde no concelho era
pouca, para uma população numerosa com fracos recursos.
Num desses dias de
trabalho intenso, quando me encontrava a observar um doente, sou interrompido
por uma algazarra vinda da entrada da urgência, e de imediato, a sala onde eu estava
é invadida por várias pessoas a acompanhar um jovem muito agitado, que ao
entrar no gabinete gritava repetidamente: - Dr. estou perdido por amor de Deus salve-me a vida,
salve-me vida! -, como se eu estivesse investido de poderes divinos.
Não era difícil perceber,
pelo cheiro característico que dele emanava o que tinha acontecido: tinha
ingerido 605 forte, um veneno muito potente utilizado na agricultura e pelos suicidas em meio rural. Este produto deixa um rasto de destruição tal nos
órgãos por onde passa, para mim só comparável à imagem de uma corrente de lava.
Senti dramaticamente que este
jovem não tinha desistido e eu pouco tinha para lhe oferecer, mas tudo faria para
o manter vivo. Tenho para mim, desde sempre, que praticar Medicina sem compaixão não é ser médico, será outra coisa qualquer.
Este trabalhador rural
tinha escolhido a cabana das alfaias agrícolas da propriedade onde trabalhava
para preparar e ingerir o veneno. Assim o fez, e logo se arrependeu e correu a
pedir socorro aos seus vizinhos que o trouxeram ao hospital.
O meu objetivo era fazer
chegar este homem vivo à unidade de cuidados intensivos mais próxima, no caso a
U.U.M. do Hospital de S. José, que distava 40-50 km do local de onde nos
encontrávamos.
Além de outras medidas de
suporte dirigidas às manifestações respiratórias, era vital estabilizar o ritmo
de um coração que teimava em parar. Não dispunha sequer de um
electrocardiógrafo. Recordo-me de lhe ter administrado várias vezes atropina
para acelerar o ritmo cardíaco e criar as condições mínimas para a sua evacuação.
Chamámos os bombeiros,
que ao chegarem nos disseram que tinham trazido a ambulância mais veloz que lá
tinham – atingia os 150 Km/h!
À saída pedi-lhes duas
coisas: que não se matassem pelo caminho e no regresso passassem lá pelo
hospital, para me informarem se o doente tinha chegado vivo aos cuidados
intensivos.
A sala onde tínhamos
estado a assistir ao doente era grande, mas o cheiro que o veneno deixou era de
tal modo intenso que teve de ficar sem poder ser utilizada, com as janelas abertas, o resto do período daquela
urgência.
Ao fim de algumas horas,
apareceram ao fundo do corredor os dois jovens bombeiros sorridentes.
- Dr. ele chegou vivo! - disseram-me felizes. Abraçámo-nos e
agradeci-lhes a ajuda que me tinham dado e principalmente ao doente.
Naquela corrida de
estafetas contra a morte, tínhamos cumprido a nossa parte.
No meio daquela tragédia,
ficaram-me perguntas sem respostas: que sofrimento estaria por detrás de tudo
aquilo que vivenciámos? que personalidade era aquela? que razões teriam levado
aquele jovem a um gesto tão definitivo, seguido de um arrependimento tão
imediato?
Estes desastres humanos a
que os médicos estão tantas vezes expostos, deixam marcas que os acompanham o
resto da vida.
C.F.