terça-feira, 2 de maio de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 4

 

605 Forte


Com poucos anos de exercício da profissão médica, no princípio dos anos oitenta, trabalhei aos fins de semana na urgência de um hospital concelhio.

O Serviço Nacional de Saúde já criado, estava a dar os primeiros passos na sua implementação.

A equipa da urgência era mínima: um médico e uma enfermeira, e os meios postos à nossa disposição eram rudimentares. A oferta de cuidados de saúde no concelho era pouca, para uma população numerosa com fracos recursos.

Num desses dias de trabalho intenso, quando me encontrava a observar um doente, sou interrompido por uma algazarra vinda da entrada da urgência, e de imediato, a sala onde eu estava é invadida por várias pessoas a acompanhar um jovem muito agitado, que ao entrar no gabinete gritava repetidamente: - Dr.  estou perdido por amor de Deus salve-me a vida, salve-me vida! -, como se eu estivesse investido de poderes divinos.

Não era difícil perceber, pelo cheiro característico que dele emanava o que tinha acontecido: tinha ingerido 605 forte, um veneno muito potente utilizado na agricultura e  pelos suicidas em meio rural. Este produto deixa um rasto de destruição tal nos órgãos por onde passa, para mim só comparável à imagem de uma corrente de lava.

Senti dramaticamente que este jovem não tinha desistido e eu pouco tinha para lhe oferecer, mas tudo faria para o manter vivo. Tenho para mim, desde sempre, que praticar Medicina sem compaixão não é ser médico, será outra coisa qualquer.

Este trabalhador rural tinha escolhido a cabana das alfaias agrícolas da propriedade onde trabalhava para preparar e ingerir o veneno. Assim o fez, e logo se arrependeu e correu a pedir socorro aos seus vizinhos que o trouxeram ao hospital.

O meu objetivo era fazer chegar este homem vivo à unidade de cuidados intensivos mais próxima, no caso a U.U.M. do Hospital de S. José, que distava 40-50 km do local de onde nos encontrávamos.

Além de outras medidas de suporte dirigidas às manifestações respiratórias, era vital estabilizar o ritmo de um coração que teimava em parar. Não dispunha sequer de um electrocardiógrafo. Recordo-me de lhe ter administrado várias vezes atropina para acelerar o ritmo cardíaco e criar as condições mínimas para a sua evacuação.

Chamámos os bombeiros, que ao chegarem nos disseram que tinham trazido a ambulância mais veloz que lá tinham – atingia os 150 Km/h!

À saída pedi-lhes duas coisas: que não se matassem pelo caminho e no regresso passassem lá pelo hospital, para me informarem se o doente tinha chegado vivo aos cuidados intensivos.

A sala onde tínhamos estado a assistir ao doente era grande, mas o cheiro que o veneno deixou era de tal modo intenso que teve de ficar sem poder ser utilizada, com as janelas abertas, o resto do período daquela urgência.

Ao fim de algumas horas, apareceram ao fundo do corredor os dois jovens bombeiros sorridentes.

  - Dr. ele chegou vivo! -  disseram-me felizes. Abraçámo-nos e agradeci-lhes a ajuda que me tinham dado e principalmente ao doente.

Naquela corrida de estafetas contra a morte, tínhamos cumprido a nossa parte.

No meio daquela tragédia, ficaram-me perguntas sem respostas: que sofrimento estaria por detrás de tudo aquilo que vivenciámos? que personalidade era aquela? que razões teriam levado aquele jovem a um gesto tão definitivo, seguido de um arrependimento tão imediato?  

Estes desastres humanos a que os médicos estão tantas vezes expostos, deixam marcas que os acompanham o resto da vida.

C.F.

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