sábado, 4 de março de 2023

JOÃO LOBO ANTUNES | UM NEUROCIRURGIÃO EM CONSTRUÇÃO





João Lobo Antunes

 

«A aprendizagem do ofício, o cumprimento durante toda a vida dos hábitos de um bom aluno, terão contribuído para fazer de mim um razoável professor ou, melhor dito, um professor feliz.»

«Creio que muitos conhecem o ofício de neurocirurgião, quando mais não seja pelas séries televisivas que tanto o exaltam. [...]. A neurocirurgia e a cirurgia cardíaca disputam palmo a palmo o prestígio e o reconhecimento mediático, e ambas têm uma aura milagreira.

No Neurological Institute de Nova Iorque onde me treinei, ouvi um dia dizer que a diferença entre Deus e o neurocirurgião é que Deus sabe que não é neurocirurgião. Acredita se, com exagerada benevolência, que os praticantes da minha especialidade são possuidores de um carisma especial, algo que parece intrínseco à sua natureza. Carisma significa dádiva dos deuses, e é verdade que este atributo é exigido por quem nos procura, como se possuíssemos uma bênção ou uma benesse adicional — “mãos de ouro”, “mãos benditas”, ouvi muitas vezes.»

«Na véspera da minha partida para Nova Iorque despedi-me de Lisboa que inesperadamente se iluminara de um sol radioso. No meu Fiat 600, deambulei pela Baixa pombalina, subi aos vértices do triângulo que domina a cidade: o Castelo, o Largo de São Pedro de Alcântara e o cimo do Parque Eduardo VII. Enchi-me de Lisboa, como ávida esponja, ou como um dromedário que bebe litros de água porque suspeita que a viagem será longa. A verdade é que nunca mais olhei Lisboa com um olhar tão profundo, e a apertei num abraço tão cerrado e amplo como nessa tarde.»

Da badana

 

O Autor

João Lobo Antunes (1944-2016), foi neurocirurgião de relevo e Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Fundador e presidente do Instituto de Medicina Molecular, assumiu ainda a presidência do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Defensor de uma visão humanista da medicina e detentor de vasta cultura, publicou sete livros de ensaios: Um Modo de Ser (1996), Numa Cidade Feliz (1999), Memória de Nova Iorque e Outros Ensaios (2002), Sobre a Mão e Outros Ensaios (2005), O Eco Silencioso (2008), Inquietação Interminável (2010) e Ouvir Com Outros Olhos (2015); uma biografia de Egas Moniz (2010); e, na coleção «Ensaios» da Fundação Francisco Manuel dos Santos, A Nova Medicina (2012).

Entre as várias distinções que recebeu conta-se o Prémio Pessoa (1996) e o Prémio da Universidade de Lisboa (2013). Foi ainda agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (2004) e Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago de Espada (2014), que distingue o mérito literário, científico e artístico.

 

Edição da Gradiva


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