quarta-feira, 19 de abril de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 3

 

O DÉDÉ


No início da década de oitenta e durante alguns anos, trabalhei aos fins de semana na chamada urgência de um hospital concelhio da margem sul do Tejo.

A equipa de serviço era composta pelo médico e pela  enfermeira e os períodos de trabalho eram de 20 ou 24 horas. Numa “boa urgência” eram vistos 50 doentes, numa má perto de 90.

As famílias aproveitavam os domingos à tarde para virem com as suas crianças à consulta. Era um período de grande crise económica e social na península de Setúbal, com fábricas a encerrar a toda a hora e naturalmente muito desemprego e fome. Algumas prescrições que passei foram aviadas na cozinha do hospital, em vez de o serem na farmácia.

E é numa dessas tardes quentes e luminosas, com a sala de espera a abarrotar de gente, em que eu me encontro tranquilamente a observar um doente, que entra pelo gabinete visivelmente assustada, a enfermeira avisando-me que lá fora estava o Dédé * que queria ser visto pelo médico. Desconhecia quem era o indivíduo, mas rapidamente apurei que se tratava de alguém com um passado muito violento, que tinha sido recentemente libertado após o cumprimento de uma longa pena de prisão.

- Se o homem quer ser visto pelo médico, que entre. – disse para a enfermeira, com alguma apreensão. Entretanto, a sala de espera há pouco cheia e ruidosa estava agora vazia e silenciosa, e … o Dédé lá entrou para o gabinete fazendo-se acompanhar de um guarda-costas corpulento, em que se adivinhava uma pistola à cinta. O nosso doente que teria a minha idade, pouco mais de trinta anos, aparentava ser mais velho com cicatrizes num rosto de pele ressequida. A consulta iniciou-se com normalidade, comigo a ouvi-lo com empatia e atenção contar as suas queixas; de seguida passei ao exame físico - mais cicatrizes no tórax - que pela sua localização só poderiam ter resultado de ferimentos superficiais. Recordo-me de ele ter comentado, que era a primeira vez que alguém o auscultava. A situação não tinha gravidade e a consulta encaminhou-se para o fim em ambiente ameno, com a prescrição de um analgésico.

O Dédé reconhecido, não quis sair sem se me dirigir dizendo qualquer coisa como isto: “andam por aí alguns.... que só se não pudesse…. mas os médicos eram uns gajos porreiros”. E concluiu: “se algum dia alguém fizesse mal a mim ou a um dos meus ou me roubassem o carro, que passasse pela leitaria X, que se ele não estivesse lá, alguém estaria por ele que trataria do assunto”.

E lá se foi com o seu guarda-costas silencioso, deixando-me atordoado, tentando adivinhar os dramas que se terão atravessado na vida daquele homem, quanta infelicidade terá sofrido e quanta desgraça terá provocado.

Esta pequena história não termina aqui.

Um ano após este episódio, estava eu num quiosque a passear os olhos pelas primeiras páginas dos jornais, quando deparo com o seguinte título em letras garrafais de um jornal sensacionalista: “Dédé morto a tiro em luta entre grupos rivais”.

E lá perdi para sempre o meu anjo (ou demónio) da guarda, que não queria mais de mim do que um pouco de atenção.

*Dédé - alcunha fictícia

C.F.

2 comentários:

  1. Conheci de perto as dificuldades e desespero dos mais atingidos por esse 2º pedido de auxílio monetário ao FMI.
    Dois vizinhos desesperados suplicando uma cunha para emprego,magríssimos. Pouco depois abandonaram o apartamento.Relatos de conhecidos,antes trabalhadores na Lisnave do período áureo,contando o suicídio de colegas desempregados,antes sustento da família,por total ausência de esperança.Suponho estas situações multiplicadas na região e decerto pelo país.
    Mas essa descrição acima contada,assente na ponderação do médico,é um exemplo para todos.
    Obrigado pela publicação.
    josé

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