sábado, 13 de maio de 2023

HISTÓRIAS DA VIDA CLÍNICA - 5

 

Haja Deus!

 

O episódio que descrevo a seguir, ocorreu comigo há cerca de quarenta anos na mesma urgência do hospital concelhio, onde vivi solitário outros casos inesquecíveis.  

 

- Haja Deus! – foram as primeiras palavras da doente.

Era domingo, esta senhora encontrava-se tranquilamente a almoçar em casa na companhia do marido, quando ao mastigar um pedaço duro de carne, ficou subitamente com a mandíbula imobilizada e dolorosa, o que motivou a sua vinda imediata à urgência.  

À entrada, apresentava-se com a face assimétrica, de boca aberta sem conseguir falar, babando-se copiosamente e de olhar assustado. A surpresa era grande, pois era a primeira vez que tal lhe tinha acontecido.

O que se tinha passado? A extremidade superior do osso maxilar (inferior) do lado esquerdo, tinha saído da sua cavidade natural, o que provocou um bloqueio da articulação.

Palpei cuidadosamente as articulações dos dois lados do rosto. Naquele hospital não dispunha do apoio de Radiologia. Ponderei rapidamente a situação, e decidi-me por tentar sem demoras resolver ali mesmo o problema – reduzindo a luxação. Ia medir forças com um músculo fortíssimo o – masséter - para restituir a extremidade do osso à sua localização original. Prescrevi um relaxante muscular e um analgésico, esperei pelo efeito e com toda a força pressionei para baixo sobre os dentes de trás, empurrei o queixo para cima, e senti nos dedos o ressalto da entrada do osso na cavidade.

E é quando a doente solta a exclamação com que começo estas linhas:

- Haja Deus! - certamente que não estava a referir-se a mim.

Escusado será dizer que teve alívio imediato e saiu felicíssima com o marido de regresso a casa.

E eu, ainda não acreditava no que tinha conseguido fazer, era a primeira vez que me confrontava com uma luxação temporo-mandibular e resolvia a situação sozinho.

Curiosamente, passados um ou dois meses surge-me outra doente com o mesmo problema e eu muito confiante, não hesitei em tentar a mesma manobra, tentei, tentei, tentei…. e o osso permaneceu imóvel indiferente aos meus esforços, pelo que me decidi pela transferência da doente para a urgência de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital de S. José, em Lisboa.

A isto chamo: a sorte do principiante.

C.F.

2 comentários:

  1. chegaste a saber se era uma luxação da temporo-mandibular?

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  2. Há 40 anos....sem Rx,, o diagnóstico foi clínico, com resposta ao tratamento (não havia trauma o que ajudou). Obrigado

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